domingo, 4 de julho de 2010

BILHETES VOTIVOS

PRÁTICA VOTIVA: UMA ANÁLISE SOBRE OS OBJETOS E BILHETES VOTIVOS EM JUAZEIRO DO NORTE - CE

Ana Cássia Félix de Sousa (Graduada em História pela Universidade Regional do Cariri – URCA)
Dra. Anna Christina Farias de Carvalho (Professora Adjunta da Universidade Regional do Cariri – URCA)


No nordeste brasileiro de forma bem particular as devoções ganham relevo, sobretudo por se tratar de um território marcado pelas vicissitudes de tempos precários, onde o sofrimento é visto em cada canto da geografia local. O trabalho em questão objetiva fazer uma análise sobre a prática votiva na Cidade de Juazeiro do Norte - Ce sobremodo nas ressignificações dos artefatos e bilhetes votivos que compõe a Casa dos Milagres Padre Cícero. As práticas votivas deixam seus rastros sobremaneira nos rincões dos sertões nordestinos – pois é muito comum se ver que quando se visita santuários, Igrejas ou locais de peregrinações se constata este acervo artesanal exposto nos locais sacros como forma de ligação íntima ou parceria com o santo de devoção. O povo simples com sua sabedoria popular, massacrado pelas injustiças sociais e não tendo condições financeiras para se recorrer aos tratamentos de saúde sofisticados, buscam nos rituais votivos as curas desejadas para a vida pessoal e familiar. Estas formas votivas se encontram expressas em cartas, onde os fiéis afirmam que conseguiram o beneplácito do santo quando buscou dele uma graça incapaz de ser conquistada por intermédio da sofisticação médica. Os ex-votos da casa dos milagres Pe Cícero são demonstrações evidentes de crença na intervenção soteriológica que se faz presente na fé e na religiosidade de um povo. Sendo assim, o estudo que ora foi elaborado, revela a importância da prática votiva no Cariri cearense, e as respectivas ressignificações contida nos ex-votos e mensagens votivas expostos na Casa dos Milagres Padre Cícero em Juazeiro do Norte.

Palavras-chave: Prátivca votiva, religiosidade popular, bilhetes votivos

A fé do povo brasileiro se expressa de diversas formas e significados. E quando se constata as manifestações populares compreende-se o quanto é valioso o conteúdo simples destas formas religiosas, pois são manifestadas inúmeras vezes sem os critérios institucionais de linhagem católica, contudo eivada de significado sacramental para as camadas populares. No nordeste brasileiro de forma bem particular as devoções ganham relevo, sobretudo por se tratar de um território marcado pelas vicissitudes de tempos precários, onde o sofrimento é visto em cada canto da geografia local, por se tratar de um reduto vilipendiado pelas secas constantes. Além da gana de ritos populares, como novenas, renovações, rezas típicas das legendárias benzedeiras entre outras se destaca como manifestação distinta e curiosa a confecção dos ex-votos.
Esta gente simples se apega de forma intrépida ao sagrado. Existe neste parâmetro uma fé sem reservas na manifestação sagrada - em um Deus que de tão próximo atende concretamente a interpelação feita piamente - aliás, existe uma negociação sutil entre o Deus e o devoto necessitado da graça. Esta permuta se traduz de maneira real na promessa executada criteriosamente por intermédio de feitos propostos pelo fiel e quando do milagre concretizado ou mesmo precedendo a esperada cura se faz urgente cumprir sem restrições o contrato oficializado. Este ritual faz parte da panacéia religiosa de nosso povo, que às vezes foge da linhagem canônica – contudo não perde os laços católicos tão enraizados na formação cultural popular.
O propósito deste estudo se fixa neste reduto de manifestações religiosas – todavia tendo como foco a prática piedosa dos ex-votos. É bastante curioso como este formato devoto se expressa. E cada fiel, carente de graça exclusiva de Deus, manifesta para o sagrado aquilo que precisa por intermédio de feitos concretos como a cópia esculpida em madeira ou fotografias de alguma parte do corpo mutilada por algum acontecimento inesperado, como também outros meios que comprovam um fato divino manifesto em favor de uma pessoa ou de um grupo social específico.

“São considerados ex-votos todos os objetos ofertados aos santos como forma de agradecimento por um milagre alcançado. Entre os ex-votos, destacam-se as réplicas das partes do corpo humano e os ex-votos desenhados ou pintados”. ( Abreu, 2001. IV.)

Estas práticas votivas deixam seus rastros sobremaneira nos rincões dos sertões nordestinos – pois é muito comum se ver que quando se visita santuários, Igrejas ou locais de peregrinações se constata este acervo artesanal exposto nos locais sacros como forma de ligação íntima ou parceria com o santo de devoção. O povo simples com sua sabedoria popular, massacrado pelas injustiças sociais e não tendo condições financeiras para se recorrer aos tratamentos de saúde sofisticados, buscam nos rituais votivos as curas desejadas para a vida pessoal e familiar. Entra neste caso uma fé ingênua, muitas vezes marcada por crenças inventadas pela tradição popular, que foge ao controle eclesial, mas que na prática atinge a satisfação existencial do povo. É claro, que em tempos recentes estas práticas ainda estão em voga – todavia com menor índice de procura – embora o povo ainda guarde e cultive a tradição dos antepassados e segue as admoestações dos grandes homens considerados santos pela massa como: Pe Cícero, Frei Ibiapina, Antônio Conselheiro, e tantos outros beatos que influenciaram deveras a memória religiosa dessa gente sofrida.
Nestas circunstâncias entra em voga a peregrinação feita aos locais sagrados, que na sua essência tornou-se sacramental não por conta própria – mas pela ação extraordinária de uma figura secular no sentido religioso que tanto bem fez para o povo e ganhou socialmente o cognome de santo – capaz de cumprir com os pedidos feitos pelos seus seguidores.
A tradição votiva remonta a antiguidade clássica em tempos em que se prestava culto aos deuses do paganismo. Os ex-votos eram expostos não somente em formatos de partes do corpo humano, mas das mais variadas fisionomias. Assim relata Abreu citando Bluteau)
“Costumam os romanos pendurar as suas fabulosas deidades, uns fragmentos de tábuas dos navios que tinham escapado do naufrágio, em que se via pintada a mercê, que imaginavam ter recebido por intercessão do nome, ao qual tinham encomendado” (Ib. 20001 p. 18)

Os ex-votos servem de suporte imprescindível para a apresentação de pedidos feitos pelos povos de todas as culturas para proteger suas castas dos males oriundos de forças sobrenaturais. Estas manifestações seguem fórmulas típicas de cada cultura. Prova disso é que nos templos do Egito, Síria, Grécia e Roma de acordo com suas crenças faziam-se suas manifestações ritualísticas em busca de favores das divindades. A prática dos ex votos era comum entre os pagãos – contudo esta atitude religiosa de conexão com o sagrado foi absorvida e efetivada pelos cristãos em meados do séc. IV, sendo difundido nos séculos posteriores como um jeito específico de se constatar a manifestação efetiva de Deus por intermédio do milagre. “Sob certo ponto de vista, eles podem ser considerados o lugar do encontro de culturas e tradições diversas, onde se cruzam elementos pagãos, folclóricos e cristãos” (id. P. 19).
No contexto histórico da Idade Média mais precisamente, os ex-votos eram manifestos por intermédio da peregrinação aos lugares sagrados. A devoção se efetivava na prática votiva remetida ao santo de um determinado lugar que neste caso era um reduto sagrado, onde se trazia o dote prometido em virtude da cura de males físicos, ou de qualquer graça alcançada pela interseção do santo patrono. Muitos templos sagrados foram erguidos neste período pela intervenção de graças concedidas a “nobres fiéis” que tendo conquistado a benevolência do santo benfeitor erigira sem reservas o templo santo que a partir de então se tornara recinto de peregrinação para muitos peregrinos que tomaram conhecimento da realidade milagrosa ali efetuada.

“Fazer um voto significava também fazer uma peregrinação (...) a peregrinação parte sempre de um voto que se vai cumprir de uma promessa que se vai pagar; por isso, o romeiro sempre haverá de levar ao santo de devoção o seu donativo” (id. P. 20-1).

Com o surgimento destes locais de encontro de romarias e a difusão de milagres conseguidos pelos devotos – a Igreja tendo como particularidade sua cúpula posiciona-se com relativa reserva aos cultos desenvolvidos pelos grupos sociais nos citados santuários. A instituição sente que algumas manifestações fogem aos critérios canônicos e deixam certo rastro de profanação não sendo aceito por uma religião conceituada como oficial. Contudo, as práticas votivas ali disseminadas tinham o seu desfecho com donativos favoráveis à instituição, pois além da presença de aristocratas com seus recursos financeiros tinham os que compunham a plebe os quais ofereciam sua força de trabalho para a construção e consolidação dos referidos santuários e igrejas, possibilitando a instituição solidificar ainda mais seu patrimônio tanto espiritual quanto material. Os ex-votos nestas circunstâncias não deixam de ser favoráveis à instituição. Carece apenas de um trabalho pastoral no que toca aquilo que pode fugir aos padrões puramente canônicos. E neste caso a vanguarda católica agia de forma “diplomática” para não deixar que a fé do povo fosse sufocada, tampouco extirpada – mas resignificada de acordo com as prescrições eclesiásticas vigentes.
Com o curso da história o povo não prescinde de sua experiência de fé. A Igreja como paradigma de salvação não consegue atender pastoralmente a todos os rincões da sociedade em processo acintoso de crescimento – até mesmo por que a quantidade de presbíteros era muito restrita ao percentual demográfico que se proliferou a partir do séc. XVIII. O povo no seu jeito próprio de se expressar cria para si rituais “sacros” que se tornam características como manifestações sacramentais de fé. Os ex-votos se incluem neste acervo memorativo de atender as diversas penúrias do povo – sendo um dado concreto de que o sofrimento está presente e que a esperança na intervenção divina é sempre uma saída para as intempéries da triste desdita de algumas pessoas.
No Brasil de forma particular os santuários ganham relevo como demanda das massas em busca de pródiga benevolência do sagrado, sobretudo utilizando-se da representação visível de formas artísticas que traduzem o sentimento de fé para o retorno imediato por intermédio da promessa feita e do milagre materializado. As procissões aos lugares santos deixam entrever o sentimento religioso personificado na fisionomia de devotos que não encontram obstáculos para manifestar a crença na intervenção do santo, segundo as necessidades pessoais. A promessa neste caso tem que ser paga, cumprida a qualquer custo, pois do contrario a parceria se desfaz, e o santo sente-se traído e não arca com o contrato na circunstância da promessa.

Visto como os grandes intermediários entre este mundo e o sobrenatural, os santos eram – e continuam sendo – intercessores que, na visão popular, podem ser bons, generosos e exemplares, mas também vingativos. A intimidade com os santos faz com que a adulação através da oferta de velas, flores, adornos, rezas, e etc., um comportamento recorrentes, assim como as ameaças e castigos que podem chegar as raias da iconoclastia e do sacrilégio, pois os santos podem ser judiados por não atenderem os pedidos dos devotos, revelando um toma-lá-dá-cá religioso que permeia a economia das trocas espirituais. (P. VAINFAS e SOUSA, op. Cit., p. 34-5)

O imaginário popular da geografia nordestina é rico na preponderância de ritos considerados não institucionais que traduzem certas formas de se presenciar a manifestação do sagrado manifestos nos momentos celebrativos. No caso das promessas era muito comum em tempos remotos, no interior do Ceará, sobremodo em Juazeiro do Norte pela intervenção do Pe Cícero - pois sempre que se tinha um membro da família com algum tipo de doença aparentemente incurável - a família se apegava ao santo de devoção e fazia-lhe um “contrato sagrado” que se a pessoa enferma ficasse curada se faria algum tipo de sacrifício como recompensa pela graça alcançada. É muito comum em tempos atuais – e ainda com muita freqüência nas localidades mais recônditas de nosso Cariri, o povo sempre possuir uma vestimenta preta que correntemente é utilizada nos dias 20 de cada mês. Este ato devoto é uma alusão ao aniversario de morte do Pe Cícero – comprovando a fidelidade do fiel ao taumaturgo do Nordeste que mesmo não tendo a honra dos altares por não ser canonizado pela Igreja Católica é considerado santo no imaginário popular.
Prova disso, é que a peregrinação de romeiros de toda a parte do país e de forma particular do Nordeste para Juazeiro do “Meu Padim” é algo freqüente durante todo ano. Nos períodos fortes de romarias a cidade fica repleta de gente desde o mais pobre ao mais abastado, tornando-se até mesmo uma forma de se homogeneizar as classes sociais ali inclusas. As igrejas e os santuários ficam cheios de peregrinos e os recintos sagrados são visitados e servem de alentos para os suplícios desta gente que acorre a intervenção do “santo padre”. A chegada a “cidade santa” não é algo de fácil acesso, sobremodo por que eles fazem por intermédio de caminhões cobertos de lonas e os bancos artesanalmente produzidos de madeiras ganhando assim tonalidade característica do peregrino que, no “pau de arara” chega a terra da “mãe de Deus” com fé intrépida que supera as intempéries da viagem cheia muitas vezes de privações.
Na casa dos milagres encontra-se as mais diversas manifestações de crenças na intervenção poderosa do Pe Cícero. É comum encontrar partes do corpo confeccionado de forma artística, e depositada neste local, traduzindo a crença popular na força eficácia do santo procurado. É natural perceber que estas formas artesanais de demonstrar a inclinação sacramental do povo têm todo um ritual anterior que começou no ato da promessa – por intermédio de uma experiência particular de sofrimento, onde a cura aconteceu e que de forma inexplicável o pedido foi atendido - a esperança se tornou fato, por isso a apresentação das peças confeccionadas e depositadas no local legitimado como santo. O peregrino estende a mão em sinal de súplica, reza sua orações e repete as milagrosas jaculatórias e incontidamente deposita o sinal de seu reconhecimento, rafiticando o fato da intervenção sagrada no momento de insuportáveis agruras do cotidiano. Aqueles objetos têm uma relevância sobrecomum para cada fiel que traz como relíquia o sinal irretocável de fé na ação do padre milagreiro.

“Porém, muito mais que a imagem sacra, é antes de tudo um testemunho individual do encontro com o sagrado. Tanto ao personagem sagrado e agente do milagre quanto ao beneficiário deste ou simplesmente da interseção coexistem nele, cada qual em seu lugar dentro do quadro expressa o seu encontro” (Vovelle 1997. P. 117).

Os ex-votos retratam a sintonia simples da crença popular com o mistério. Prova disso, é que aquele povo peregrino traz o sinal empírico do milagre acontecido em sua história. Não foi algo propositadamente planejado. Foi um fato verídico que de acordo com o imaginário popular aconteceu – e que a fé sertaneja traduz como manifestação inequívoca da ação milagrosa do santo protetor. No momento em que o fiel deposita no recinto sagrado o material confeccionado existe ali a concretização de uma cura milagrosa onde a enfermidade foi arrancada e jogada fora, pois nos próprios objetos são inscritos o nome da doença a qual foi curada e que agora o devoto restabelecido cumpre sua promessa e pede graças para não ser acometido daquela enfermidade novamente.

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