sábado, 13 de março de 2010

PADRE CÍCERO & "PADIM CIÇO": O HOMEM, O SANTO, UM MITO.

No dia 20 de julho de 1934 na progressiva cidade de Juazeiro do Norte morre Pe. Cícero Romão Batista. Sua práxis religiosa ultrapassou as fronteiras geográficas do cariri. Em todo o país seu nome é citado, em algumas circunstâncias de maneira controvertida, em outras, cultuada e de forma especial mitificado em toda região do Nordeste brasileiro.
Quem conhece, não fica indiferente ao “fenômeno de Juazeiro” do Norte. Meu “padim” assim cognominado devotamente pelos seus romeiros era sempre reverenciado e acorrido, sobretudo nos períodos de agruras do sertão nordestino, marcado por secas prolongadas, estes devotos viam em seus conselhos soluções evidentes para atenuar a pobreza que rondava o chão seco do nordeste. “Pe. Cícero já estava há apenas cinco anos no Joaseiro quando sobreveio a terrível seca de 1877-1880 que devastou o Ceará e o Nordeste do semi-árido. [sic] A grande seca [sic] foi marcante na vida do Pe. Cícero, como padre de um povoado que chegou quase ser dizimado.”(BEOZZO. 2004).
Ao ser enviado para aquele vilarejo com o propósito de evangelizar. O recém ordenado Padre Cícero jamais imaginaria que seria o protagonista de mudanças significativas na história do cariri e que sua figura fosse transformada em paradigma de santidade e principalmente líder político e religioso da história cearense. O que realmente consta nos anais da história cearense, sobre a prática caritativa do padre Cícero é seu acolhimento a todo e qualquer retirante que marcado pelo sofrimento do clima semi-árido, vinha a juazeiro em busca de socorro para a situação cruenta a qual passava sua família e toda a gente local. Dessa forma o jornalista Xico Sá descreve “Levas e levas de miseráveis corriam para o Juazeiro, arrastados pela fé e pelo assistencialismo religioso do sacerdote.”
Nestas circunstâncias, este presbítero tinha uma sabedoria incomum – encaminhava muita gente parar terras férteis do sertão, para viver da agricultura e de outros meios de subsistência. Ele era conhecedor da geografia da região do cariri e tendo um carisma inconteste, conseguia atrair até Juazeiro a demanda de gente não somente pobre, mas também a admiração de muitos célebres senhores de terras que atentos a petição do devotado presbítero davam guarida em troca de trabalhos agrícolas para muitos retirantes que vinham de outros “rincões” do nordeste, fugindo da seca. Ele sabia que muitas localidades do cariri eram férteis e por intermédio de uma quadra invernosa abundante daria para agregar a casta sertaneja que disposta ao trabalho agrícola, proporcionava o desenvolvimento do vilarejo que sobre a figura eminente do Padre ganhava proporções urbanas.
Um exemplo, muito bem visto que comprova este fato é que o Padre Cícero, havia alugado o Sitio Baixa Dantas - o qual era liderado pelo "beato Zé Lourenço” - para que as pessoas dizimadas pela seca cruel que assolou sobretudo o sertão sul do Ceará pudessem encontrar amparo. Este lugar também servia para assistencializar uma massa muito grande de pessoas advindas de todo o Nordeste que passavam fome, sobremodo devido os efeitos causados pela escassez de chuvas.
Sendo assim, as levas de miseráveis que compunham as vicissitudes do sertão nordestino, encontrava naquele lugar um refúgio - pois sendo este muito bem cuidado pelo beato, amigo do Padre Cícero e tendo estabelecido um modelo de trabalho comunal, tudo o que ali se produzia era de igual modo dividido entre todos. Vivendo todos mantidos por uma economia de subsistência e que qualquer pessoa que ali chegasse era enviada pelo padre a esta pequena comunidade que se tornara um “modelo de sociedade comunal” tendo como base o trabalho comunitário. “Cabia ao beato receber, naquele pedaço de terra arrendada, os desvalidos dos desvalidos, os molambudos, os mais “lascados”, como se diz na língua da região, os sem jeito. Olhos arregalados, um povo só olhos, cacimbas d’alma.”(Ib. Idem.).
Juazeiro cresceu vertiginosamente tendo como suporte a figura emblemática do Pe Cícero. E suplantou em estatísticas demográficas cidades tradicionais como Crato, Barbalha e Missão Velha. Era comum a procura de conselhos por parte dos chefes das famílias que viam naquele homem um “oráculo divino” que profetizava fatos que porventura a própria natureza seguia fielmente seus desígnios. Era compreendido ainda em sua vida terrena como um “ente divino” para todo e qualquer sertanejo.
As peregrinações para Juazeiro tiveram sua gênese com o padre ainda vivo e no exercício de seu polêmico ministério sacerdotal. Ele era um exímio conselheiro e de forma especial muito próximo dos sertanejos que viam nele uma solução imediata para os problemas tanto físicos quanto sociais. A cúpula eclesiástica ainda fincada suas raízes num sistema imperialista falido – não ultrapassava as fronteiras dos púlpitos eclesiais. Por isso, que com atitude diferenciada, muito próxima ao sofrimento desta gente, o padre de Juazeiro foi ganhando a confiança e devoção da massa popular – sobretudo a mais sofrida e consequentemente sendo divulgado como alguém que de tão raro nos meios eclesiásticos – se tornou divino.
É comum se ouvir histórias fruto da oralidade popular acerca dos feitos extraordinários do Padre Cícero. Muita gente de naturalidade carirense – principalmente os mais velhos que tiveram contato com algum parente ou mesmo que viram e ouviram as admoestações de meu “Padim” propagam seus prodígios com profunda continência subjetiva - pois sabem da significância religiosa que este presbítero tem para a vida da gente sertaneja.
O mais curioso é que Juazeiro do Norte cidade situada no sul do ceará se tornou sinônimo de santificação de almas, expiação de pecados e etc. Alguns teóricos afirmam que esta cidade erigida sobre as profecias do Pe Cícero é notoriamente a “nova Jerusalém”. Existe uma mística singular na “cidade santa” onde o Padre Cícero habitou e construiu igrejas e capelas. Quando ainda vivo foi sinônimo de patrimônio espiritual do povo simples – que movidos pela fé e agruras da vida buscavam o refrigério para as vicissitudes de vida cheias de privações.
Contudo, para a hierarquia eclesiástica ele era um transgressor das normas canônicas. Por isso, ele atraiu para si opositores de dentro da própria Igreja que munidos de alguns fatos supostamente milagrosos interpelaram até a Santa Sé para remeter-lhe a interdição de suas funções ministeriais. No caso do milagre da hóstia que quando tomada pelas mãos do próprio Padre Cícero, se tornou repentinamente e misteriosamente em sangue na boca da beata de nome Maria de Araújo, por ocasião da celebração preceitual de uma missa. Este fato foi o “estopim” para muitas represálias sobre a práxis ministerial do Padre Cícero.
Ele foi considerado pela Diocese do Ceará como embusteiro, utilitarista. Protagonista efetivo de supostos milagres para atrair a complacência do povo para si, por intermédio de uma fé ingênua e confrontá-lo com a Santa Madre Igreja.


“Pe. Antônio Alexandrino, como executor e ao mesmo tempo mentor da política episcopal para o Juazeiro, investido ademais da função de administrador da capela, é o responsável maior, junto a autoridade diocesana, pela imagem desfavorável do Pe. Cícero Escreve regularmente por quase dez anos seguidos, pelo menos a quase quinze dias, ao Prelado Diocesano, [sic]. A pretexto de qualquer assunto, teologia, pastoral, finanças, política, a imagem do Pe. Cícero é apresentada sob uma luz adversa. Custa ao padre Alexandrino reconhecer méritos, qualidades e principalmente virtudes no seu colega, submetidos a duras penas canônicas e contínuas calunias.” (BIOZZO. 2004, p. 38).


Mesmo com reservas declaradas da Igreja concernente ao controvertido acontecimento daquela celebração eucarística, a fé popular ao santo de Juazeiro proliferou em proporções consideráveis. Os interditos remetidos pela cúpula eclesial direcionadas ao Pe Cícero até contribuiu para a ramificação ainda mais efusiva de sua personalidade divina. Neste caso, as peregrinações a Juazeiro foram constantes. Gente de toda a parte do Nordeste deixava suas raízes e vinham com suas famílias, munidos da convicção de “fazer a vida” nas terras santas de Juazeiro. Sob a sombra do “Padim” ninguém tinha medo de enfrentar as agruras do cotidiano. Desta forma Biozzo faz a citação de uma carta destinada ao bispado do ceará remetida por Dom Joaquim que relata: “Antes de tudo, devo informar V. Excia. que a suspensão não produziu o efeito que V. Excia. esperava. Continuam as romarias em larga escala e o dinheiro que deixam no Juazeiro é incalculável. Os mesmos exagerados afirmam terem entrado naquele lugar dezenas de contos”.
O povo difundia seus feitos e despertava assim, a curiosidade popular. Neste parâmetro ele sempre era visitado por caravanas oriundas de outras localidades do Nordeste. E muitos presentes e donativos chegavam a sua casa e ele distribuía sempre com os mais carentes. Esta prática assistencialista e localizada fazia dele um “bem feitor” símbolo da caridade divina – sendo muitas vezes interpretado como enviado de Deus, alguém que transcendia a conceitos puramente humanos.
Ele com sua dedicação ao povo sofrido gradativamente no imaginário popular constituira-se na figura iminente de um “mito”. Até mesmo no tempo em que Juazeiro esteve envolvido com uma guerra deflagrada contra o Coronel Franco Rabelo – camponeses e jagunços de todos os recantos do Ceará deixavam suas famílias para se alistar para defender as terras do Padre Cícero das maquinações diabólicas do sórdido coronel. Com a vitória concretizada o Padre Cícero se tornou inconteste na mente do povo sua ligação com o alto, pois segundo os seus devotos ninguém podia fazer frente ou suplantar ao poder divino. Prova disso estava na façanha considerada mais um milagre da vitória bélica dos beatos do “Padim” contra a “besta do apocalipse” como era denominado o Coronel Franco Rabelo.

segunda-feira, 1 de março de 2010

RENOVAÇÃO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS


A DEVOÇÃO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS NO CARIRI


A devoção ao Sagrado Coração de Jesus se manifesta de forma concreta na Consagração que é feita por intermédio de um rito familiar. É um evento comum em muitas regiões do Brasil, mas de forma particular no sertão do cariri, em que o povo influenciado por Padre Cícero cultiva anualmente esta devoção. Não se trata de um evento fora dos padrões católicos, mas tem afirmação da própria jurisdição canônica.


A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é uma das expressões mais difundidas da piedade eclesial, tal como refere recentemente o “Directório sobre a Piedade Popular e a Liturgia” da Congregação para o Culto Divino. Os Pontífices romanos têm salientado constantemente o sólido fundamento na Sagrada Escritura desta maravilhosa devoção.


A renovação se torna um evento que não precisa ser realizada com a presença do padre, pois o próprio povo se reúne em uma determinada casa e oficializa a celebração do rito, tendo como condutor uma pessoa da comunidade que já tem experiência para assim tirar a consagração. O povo em torno do quadro do Coração de Jesus participa e rende-lhes as devidas homenagens; repetem devotamente jaculatórias e cantam hinos alusivos que tornam concreta a fé inequívoca em Jesus ali entronizado. Esta e tantas outras manifestações religiosas típicas do povo campesino, feitas devido à fé popular, também porque desde tempos remotos a igreja não pode atender a demanda das regiões mais longícuas e por isso os ritos são celebrados sem a presença do sacerdote.
Segundo PAZ, 2004. p.12.


O pouco contato com as autoridades eclesiais era uma das características mais pronunciadas do catolicismo naquele período. numa perspectiva mais ampla, seguindo influências da tradição lusitana, o catolicismo no Brasil até meados do século XIX, tem como característica central a essência em atividades para litúrgicas de caráter devocional realizadas coletivamente, tais como festas, procissões, novenas, etc.


O ritual da Consagração tem sua história. Tem um conteúdo em forma de petição e principalmente ofertando a família e residência ao zelo do Bendito Coração de Jesus. O propósito é coloca-lo no lugar mais alto da casa, o qual é denominado de trono, de onde o mesmo pode exercer sua majestade, cobrindo de benefícios toda a família ali residente.


O Ato de Consagração ao Sagrado Coração de Jesus está assim configurado:


SAGRADO CORAÇÃO de Jesus, que manifestastes a Santa Margarida Maria o desejo de reinar sobre as famílias cristãs, nós vimos hoje proclamar vossa realeza absoluta sobre a nossa família. Queremos, de agora em diante, viver a vossa vida, queremos que floresçam, em nosso meio, as virtudes às quais prometestes, já neste mundo, a paz. Queremos banir para longe de nós o espírito mundano que amaldiçoastes. Vós reinareis em nossas inteligências pela simplicidade de nossa fé; em nossos corações pelo amor sem reservas de que estamos abrasados para convosco, e cuja chama entreteremos pela recepção freqüente de vossa divina Eucaristia. Dignai-Vos, Coração divino, presidir as nossas reuniões, abençoar as nossas empresas espirituais e temporais, afastar de nós as aflições, santificar as nossas alegrias, aliviar as nossas penas. Se, alguma vez, algum de nós tiver a infelicidade de Vos ofender, lembrai-Vos, ó Coração de Jesus, que sois bom e misericordioso para com o pecador arrependido. E quando soar a hora da separação, nós todos, os que partem e os que ficam, seremos submissos aos vossos eternos desígnios. Consolar-nos-emos com o pensamento de que há de vir um dia em que toda a família, reunida no Céu, poderá cantar para sempre a vossa glória e os vossos benefícios. Digne-se o Coração Imaculado de Maria, digne-se o glorioso Patriarca São José apresentar-Vos esta consagração e no-la lembrar todos os dias de nossa vida. Viva o Coração de Jesus, nosso Rei e nosso



Esta prática votiva, que acontece anualmente nas casas caririenses (citamos o cariri, traz em seu perfil cultural não apenas a simbologia do ato religioso – mas também pode ser observado fatores como: celebração de aniversário de núpcias; preservação do rito ao sagrado; culto a tradição dos antepassados; valorização dos costumes locais; elo comunitário; prosperidade para a comunidade.
Existe todo um ritual que precede esta festa comunitária; pois a própria família já se encarrega de preparar o ambiente. Primeiro a casa será reformada - feito uma faxina especial - onde todos os cômodos serão pintados, e principalmente o lugar especial onde está (ou será) fixado o quadro do Sagrado Coração de Jesus. Um detalhe curioso encontrado nas casas da região; logo as vésperas da renovação, a sala do santo onde será o lugar da cerimônia, ganha uma ornamentação singular. Ali se expõe uma mesa (denominada de mesa do santo) coberta com uma toalha comumente branca com bordados ao estilo característico do rito. Em muitas residências a parede principal que fica defronte a porta da entrada é pontilhada de quadros de Santos e santas, - contudo o quadro que está sobre o centro é dos ícones do Coração de Jesus e Maria.
A família convida toda a comunidade para a noite da consagração, para assistir a reza e tomar o tão histórico “café do santo”.


A devoção ao Sagrado Coração começou assim: no dia 16 de junho de 1675, durante uma exposição do Santíssimo Sacramento, Nosso Senhor apareceu a Santa Margarida Maria Alacoque e, descobrindo seu Coração, disse-lhe: “Eis o coração que tanto tem amado aos homens e em recompensa não recebe, da maior parte deles, senão ingratidões pelas irreverências e sacrilégios, friezas e desprezos que têm por mim neste Sacramento de Amor”


Os parentes que moram distante vêem para rever seus entes queridos, e durante o dia sentem-se felizes com o clima de festa que se gesta nos alpendres da residência. Existe também um jantar para os familiares - precedendo assim o grande momento - envolto de significados culturais.
Enfim, tudo converge para a pauta da solene celebração. Outro fator importante é que existe uma pessoa “eleita” pela comunidade para rezar as jaculatórias. Todos se reúnem no interior da sala do santo, sobretudo as mulheres que cantam hinos alusivos aos santos de sua devoção. Mesmo não adentrando ao interior da sala, os homens mantêm-se em silencio acompanhando a celebração. A forma de reverenciar o sagrado é algo que impressiona a quem não tem o mesmo costume da localidade. Os senhores mais tradicionais retiram seus chapéus, e se concentram nas ladainhas cantadas pelas mulheres. No final da renovação se houve costumeiramente os “vivas” aos santos que estão entronizados na parede da sala. Todos estes gestos fazem parte significativa do ritual celebrativo.
Logo após o rito devocional é organizado o momento do café do santo, em que se achegam à mesa em primeiro lugar os homens a convite do anfitrião; depois os rapazes e moças e só depois as crianças. Existe de certa forma, um estilo patriarcal de se executar a serventia do café. Ninguém sai sem experimentar do café, pois o dono da casa sai para o terreiro em busca dos convivas, chamando-os a todos, pois é sempre uma alegria recebe-los em sua casa.



Esta panacéia de ritos torna-se sacramental para a cultura do cariri. Por isso, a renovação traz em sua essência uma dimensão de regionalização do sagrado que só quem conhece sabe o real valor destes eventos. A renovação agrupa, congrega sentimentos, faz a comunidade sentir o valor e o significado do religioso em sua história. A religião foge do rótulo “ópio do povo”, pois instiga o povo a ser solidário, instituir alteridade dentro do grupo; fazendo com que todos se conheçam mutuamente