NARRADORES DE JAVÉ
O filme Narradores de Javé, de
Eliana Caffé, conta a história de um povoado fictício denominado Javé, que está
prestes a ser inundado por via da construção de uma hidrelétrica. Nestas
circunstâncias os moradores do pequeno lugarejo, ameaçados pela hipótese de
perder tudo o que ali se havia construído no decorrer de toda uma vida, de
suplantar todas as suas reminiscências e deixar para trás a sua própria
identidade quanto ao seu lugar de origem, entram em “parafusos”.
Neste dado momento, um senhor já de
idade dá uma idéia. “Não inunda se virar coisa importante, patrimônio”. Como
assim patrimônio? Todos queriam saber como e de que forma isto poderiam ser
feito. Estavam todos curiosos e fariam de tudo pra que não pudessem de forma
alguma abandonar o pequeno lugarejo. Mas pra que Javé pudesse se transformar em
patrimônio histórico fazia-se necessário que houvesse documentado de alguma
forma toda a história da cidade, principalmente o histórico da sua fundação.
Mas como se faria isto se Javé era um lugar tão pequeno, que nem existia no
mapa?
O Próprio mentor da idéia sugere que
seja escrito em um livro a historia do lugar. Mas como se faria isto se em Javé
todos eram analfabetos? Eis uma preocupação! Mas havia alguém que poderia
ajudar. Antônio Biá era o carteiro da acanhada cidadezinha, e este havia sido
degredado de exercer o seu ofício diário – pois consta num dos episódios do
filme que Biá escrevia cartas em nome dos moradores de Javé por sua própria
conta, para manter a sua profissão e continuar trabalhando. Porém a atitude
incorreta de Biá é descoberta e este definitivamente é impedido de exercer o
seu trabalho.
Os habitantes de Javé vêem que esta
é uma forma de Biá se redimir. E é incumbida a ele a missão de escrever o
referido livro que futuramente seria o documento oficial usado para tombar e
salvaguardar o pacato lugarejo como patrimônio histórico e cultural da
humanidade.
É neste momento que ingresso com uma
das discussões que trata este ilustre filme – a relação entre o oral e o
escrito. No filme Biá é conhecido como dado a florear as coisas, a enfeitar,
distorcer os fatos, a usar da sua subjetividade. Deste modo pode se pensar no
papel do historiador, que de certa forma usando da sua subjetividade constrói
conjecturas e interfere direto ou indiretamente na história.
Tendo como base a história de vida
dos moradores de Javé e principalmente o relato oral de memória dos mais
velhos, pra que estes possam contar como se deu a gênese do lugar, o que na
história é chamado de “mito de origem” entra o papel de quatro personagens
principais que de acordo com os seus relatos, foram os seus antepassados que
fundaram a cidade. Cada qual conta a história a sua maneira de forma que sejam
reconhecidos como sendo parte da casta do fundador da cidade de Javé. De acordo
com as personagens, cada qual defende a sua narrativa como sendo veredicta. Desta
forma percebe-se aqui que há uma disputa de memória.
O primeiro entrevistado relata que o fundador
foi Idaléssio que veio se fixar no lugar com a sua gente na época do ouro que sendo
este vencido numa disputa pela conquista de território sai fugindo com a sua
família e seu povo e vem habitar em Javé. Percebe-se aqui o intrometimento de
Biá na tentativa de modificar a fala do entrevistado, segundo ele, “fugir não é
algo digno” porque não “sair em retirada, em marcha ré de cara pro inimigo”.
Este não é o único momento em que acontece de Biá dar controvérsia a fala dos
personagens. Já Maria Dina diz que a instituidora do lugar foi uma mulher.
Javé, segundo a entrevistada era uma comunidade matriarcal e que supostamente a
fundadora fazia parte dos antepassados da personagem.
O terceiro entrevistado é Firmino.
Este faz um relato similar ao do primeiro entrevistado, só que discorda no
momento em que Idaléssio saiu fugindo com o seu povo. Ele diz que saiu em
retirada, confirmando com a suposição feita por Biá. Desta forma nota-se aqui a
constante disputa de relatos, e as varia0ções e aperfeiçoamento pelo quais
estes são submetidos.
O quarto entrevistado é Pai Cariá
outro personagem de origem africano, diz que foram os seus antepassados que
fundaram Javé e faz o relato de toda a história sendo cantada no idioma de seu
povo. Desta forma o nome do fundador se assemelha aos nomes cognominados pelos outros
personagens. Idaleco este é o nome e a narrativa prossegue até que este se
cala, pois se vê impedido pelas idéias e palpites que propõe Biá durante todo o
contexto da história.
` O filme ainda prossegue com outras
entrevistas, outras histórias, porém as quatro que foram aqui destacadas discutem
o que já fora supracitado nas linhas anteriores – “o mito de origem”. É bastante interessante a história de Javé,
pois o filme se encontra eivado de
vários aspectos bíblicos. A começar pelo próprio nome da localidade e a maneira como este é inundado, o que evoca a
passagem bíblica do dilúvio. Nesta circunstância observa-se que como no livro
do Gêneses tudo parte de um mito de origem, de como se encontrou explicação
para que os fatos fossem acontecendo. Em Narradores de Javé, as narrativas
acontecem de forma semelhante e que explica o mito de origem da acanhada
cidadela.
Outro aspecto que podemos destacar
no filme, é como este, através dos relatos orais das personagens, se aproxima
tanto dos aspectos da tradição oral quanto da história oral. De certa forma,
não podemos deixar de se colocar evidências com a história oral, sendo assim
podemos enfatizar a história de vida de cada morador, e um dos aspectos que se
evidencia nas narrativas orais é que esta por excelência resgata informações
não registradas, mas que permanecem na memória e nas práticas do cotidiano.
A tradição oral, que é algo que se nota com
preponderância nas entrevistas concedidas pelas personagens, pelo simples fato
de se está evocando para o momento presente as práticas sociais, culturais e
religiosas de um grupo e que estas consistem na identidade, sobrevivência e
consistência deste grupo. Estes são aspectos que se pode observar em quase todo
o percurso do filme através dos relatos memoráveis dos entrevistados.
Voltando ao que discutíamos a
princípio – a relação entre o oral e o escrito, é chegada a hora da pronta
entrega do livro, Biá se omite e pede que um garoto possa fazer a entrega do
mesmo. Para surpresa dos moradores as páginas do livro permanecem em branco.
Talvez Biá tenha entrado em parafusos com a complexidade de tudo que lhe fora
relatado, e decidiu, não por querer, mas porque convinha deixar que tudo fosse
oralmente expressado, já que passando da forma oral para o escrito, ele estaria
dando limitações à complexidade do oral que se torna tão substancial nas
reminiscências e memórias de cada indivíduo.